A CHINA QUE CORRE SOBRE TRILHOS
Da revolução ferroviária ao maior movimento migratório do planeta: uma viagem pelo impacto transformador dos trens de alta velocidade na sociedade chinesa
Ultimamente tem sido assim: pensou China, pensou tecnologia. E não é pra menos. A frase mais comum de alguém que volta de grandes cidades como Shanghai, Shenzhen ou Chongqing é: “ir para a China é viajar para o futuro”. Mas para além de inovação e tecnologia de ponta, tem muitas outras coisas que explicam a China contemporânea e elas também são abordadas aqui no Decode China.
Um tema que mudou a China e nos fascina é o dos trens de alta velocidade. Quer saber por quê? Mergulha com a gente para entender um pouco além do que é percebido à primeira vista.
Imagine fazer Rio-São Paulo em 74 minutos
Visualize essa cena: você mora no Rio de Janeiro e às 18h tem uma ideia. Você vira para sua amiga e fala “vamos jantar em São Paulo hoje?”. Cada uma compra sua passagem de trem pelo celular, a R$ 120,00. Vão para a estação de trem e 1 hora e 14 minutos depois estão na noite gastronômica da maior cidade do Brasil. Voltam para o Rio na mesma noite e, antes de dormir, olham para o céu estrelado e iluminado da Cidade Maravilhosa, onde conseguem da janela ver uma pontinha do Corcovado.
Esse cenário já é realidade nas viagens entre grandes cidades chinesas. O trajeto entre Beijing e Shanghai, por exemplo, que nos trens convencionais (os chamados 'trens verdes' que ainda operam no país) levava aproximadamente 13 horas, hoje pode ser percorrido em apenas 4 horas e 18 minutos pelo GTrain (高铁 - gāotiě), um dos trens de alta velocidade que cobre os 1.380 km da rota. O tempo exato varia conforme o horário de pico e o número de paradas intermediárias.
Além da velocidade das máquinas, também impressiona a velocidade com que a China construiu a malha mais rápida de trens do mundo: 20 anos. Isso foi três vezes mais rápido que o Japão ou a Europa.
Atualmente, a malha ferroviária chinesa conta com 42.000 km, que devem chegar a perto de 50.000 até o final de 2025.
Curiosidade:
Em 1978, o então líder máximo da China, Deng Xiaoping (1978-1992), visitou o Japão e dizem que voltou impressionado com os “shinkansen”, os trens-bala japoneses. A partir daí, ele deu início ao sonho do que viria a ser um plano colocado em prática a partir de 2006, no 11º Plano Quinquenal. Desde então, cada novo plano ajustou e ampliou metas e estratégias, que fizeram com que a China chegasse ao que é hoje: o maior em malha ferroviária mundial, em número de passageiros e em tecnologia, representada através da velocidade de seus trens.






O fenômeno das "cidades vizinhas" redefinindo distâncias
No coração do sudoeste da China encontramos duas supercidades: Chengdu e Chongqing.
Separadas por menos de 300km em linha reta, estas cidades estiveram historicamente divididas por montanhas acidentadas. Mesmo assim, nunca deixaram de se comunicar. Hoje, com o tempo de viagem entre elas reduzido de 13 horas para apenas uma hora, parece que foi criado um portal mágico conectando estes dois gigantes urbanos.
Este é apenas um exemplo do fenômeno que os planejadores chineses chamam de "neighbor cities" ou cidades vizinhas - metrópoles que, apesar das distâncias físicas, funcionam quase como bairros umas das outras, graças aos trens de alta velocidade. Executivos fazem reuniões matinais em uma cidade e voltam para casa em outra, no mesmo dia. Estudantes frequentam universidades além de suas cidades, sem precisar se mudar. O conceito de espaço e tempo foi completamente reconfigurado.
Este "encolhimento" do território transformou a economia regional chinesa, criando mercados de trabalho integrados, clusters industriais complementares e novas oportunidades de negócios, que seriam impensáveis com as antigas distâncias.
É como se o trem de alta velocidade tivesse dobrado o mapa da China, aproximando pontos antes distantes e redesenhando a geografia econômica do país.
O Ano Novo Chinês e a peregrinação moderna
Durante o Festival da Primavera春运 (Chūnyùn), conhecido mundialmente por Ano Novo Chinês, ocorre o maior movimento migratório anual do planeta.. Mas, o que antes era uma jornada de dias, com imagens icônicas de estações superlotadas, hoje se tornou uma experiência radicalmente diferente, graças ao aumento das rotas de trens de alta velocidade disponíveis.
Em 2023, durante o Festival da Primavera, mais de 60% de todas as viagens ferroviárias foram realizadas em trens-bala, comparado a menos de 20% em 2012. Essa mudança além de gerar uma distribuição do fluxo de viajantes dentro de um período de tempo mais longo, também gera alterações na própria forma de celebração desta tradição chinesa.
O impacto vai muito além da logística
Nos últimos anos, surgiu o fenômeno do "Chunyun Reverso", onde pais idosos viajam para visitar seus filhos nas grandes cidades, invertendo o fluxo tradicional. As próprias reuniões familiares mudaram: 28% dos moradores urbanos agora recebem parentes de múltiplas províncias durante o Festival da Primavera, criando encontros entre gerações, que eram difíceis antes da revolução ferroviária.
Além das viagens familiares, que permanecem essenciais, atualmente, cerca de outras 300 milhões de viagens ocorrem durante o Festival com propósito turístico, para destinos conectados por trens de alta velocidade. O trem-bala não apenas encurtou distâncias — ele redesenhou um ritual cultural milenar.
Evolução do Chunyun / Ano Novo Chinês:
2013: 2,9 bilhões de viagens totais; 225 milhões por trem
2019: 3 bilhões de viagens totais; 410 milhões por trem-bala
2023: Trens-bala responsáveis por 60% de todas as viagens ferroviárias durante o Ano Novo Chinês
Transformações:
30% dos trabalhadores migrantes agora visitam suas cidades natais múltiplas vezes ao ano
300 milhões de viagens turísticas durante o Ano Novo Chinês
40% de aumento nas visitas a destinos conectados por trens-bala
Impacto Econômico e Social:
Cidades chamadas de 2º e 3º nível experimentam um aumento de 25-35% no consumo durante o feriado
40% menos interrupção em serviços de e-commerce durante o feriado
28% dos residentes urbanos agora recebem familiares de múltiplas províncias
Curiosidade histórico-cultural:
O Festival da Primavera e as viagens de trem compartilham uma história entrelaçada na memória coletiva chinesa. Desde a década de 80, as imagens icônicas do Chunyun mostravam estações ferroviárias superlotadas e passageiros carregando grandes sacolas de presentes tradicionais. Os trens verdes de baixa velocidade, chamados carinhosamente de "trens verdes da casa", tornaram-se símbolos culturais, imortalizados em filmes e literatura. Muitas famílias guardavam os bilhetes como souvenirs, marcando o ritual anual de retorno. Os vagões-restaurante serviam mingau de arroz e ovos cozidos, criando uma gastronomia ferroviária própria que trazia conforto durante as longas jornadas. Com a revolução dos trens-bala, embora a experiência tenha mudado drasticamente, o sentimento permanece: os trilhos continuam sendo as artérias que bombeiam o sangue da reunião familiar por todo o país durante o festival mais importante da cultura chinesa.
Desafios nos Trilhos: O Outro Lado da Alta Velocidade
Apesar do avanço tecnológico, o sistema ferroviário de alta velocidade chinês enfrenta desafios consideráveis. A sustentabilidade financeira é uma preocupação, com muitas linhas operando com alto endividamento e financiamento baseado em empréstimos governamentais.
Questões ambientais e sociais também se destacam: deslocamentos populacionais e impactos ecológicos significativos acompanharam a expansão acelerada. Um fenômeno revelador são as 'estações fantasma' - terminais monumentais construídos em áreas com baixa demanda de passageiros, que hoje permanecem praticamente vazios, símbolos concretos do descompasso entre ambição e planejamento prático em algumas regiões.
A poesia dos trens capturada através das lentes de Wang Fuchun
"Os trens são microcosmos da sociedade chinesa. Nos trens, você pode testemunhar todas as formas de vida humana: nascimento, envelhecimento, doença e morte; alegria, raiva, tristeza e felicidade.” Wang Fuchun
Para entender verdadeiramente a magnitude e o significado humano do 春运 (Chūnyùn), não há maneira mais poderosa que explorar o extraordinário legado fotográfico de Wang Fuchun (1943-2021). Conhecido como o "Fotógrafo dos Trens Chineses", Wang dedicou quatro décadas de sua vida capturando a essência das viagens ferroviárias na China, especialmente durante o Festival da Primavera.
Wang, que trabalhou como ferroviário antes de se tornar fotógrafo profissional, documentou meticulosamente a transformação do país através das janelas dos trens. Suas imagens em preto e branco dos anos 1980 e 1990 mostram vagões superlotados, passageiros dormindo onde podiam, mães embalando bebês, e o contraste marcante entre áreas rurais e urbanas vistas das janelas dos trens.


À medida que a China se transformava, também mudavam as imagens de Wang. Suas fotografias mais recentes mostram passageiros em trens-bala modernos, de cabeça baixa em seus smartphones, em vagões espaçosos com assentos confortáveis. Este contraste visual serve como um poderoso testemunho da evolução da sociedade chinesa.
Seu trabalho, reunido em diversas coleções como "Chinese on the Train", permanece como um dos mais importantes registros visuais da extraordinária jornada da China – não apenas nos trilhos, mas em sua trajetória de transformação nacional.
O que tudo isso tem a ver com geopolítica?
A estratégia de desenvolvimento das linhas férreas na China está também ligada ao seu planejamento geopolítico. O país está criando os chamados “corredores de desenvolvimento”. Os trens de alta velocidade são parte integrante da lógica chinesa de desenvolvimento econômico a partir da infraestrutura e da logística, assim como rodovias, portos, aeroportos e ferrovias de carga.
Nossa amiga e consultora Larissa Wachholz, que morou na China por cinco anos e que está na ponte aérea Brasil-China há 15, comenta que “a conexão de alta velocidade entre cidades foi, sobretudo, um grande impulsionador de desenvolvimento econômico. A China, um país de dimensões continentais e que até pouco tempo era a maior população do mundo e hoje é a segunda, compreende, como ninguém, o valor, em geração de emprego e renda, da conexão e da mobilidade.”
Belt and Road - você já ouviu falar?
A Belt and Road Initiative (BRI) é a estratégia chinesa de conectar continentes através de infraestrutura logística e digital, encurtando distâncias e redesenhando rotas comerciais, ou seja, levando para o mundo o mesmo modelo que transformou a China internamente.
Na África, exemplos como a ferrovia Mombasa-Nairóbi no Quênia e a linha Adis Abeba-Djibouti na Etiópia demonstram como a China replica seu modelo de desenvolvimento: conectando portos a centros econômicos e criando corredores de comércio, que alteram dinâmicas econômicas estabelecidas há décadas.
Para muitos países africanos, essas modernas ferrovias representam mais que infraestrutura – são símbolos de modernização e novos laços com o gigante asiático, que já se estabeleceu como principal parceiro comercial do continente.
Assim como no tradicional jogo de estratégia chinês Go (围棋, wéiqí), onde cada peça colocada altera sistematicamente todo o tabuleiro, cada nova linha ferroviária na China cria ondas de transformação que se propagam pela sociedade, economia e cultura. A revolução ferroviária chinesa continua a todo vapor. Enquanto o país avança pelos trilhos da inovação, fica claro que esta não é apenas uma história sobre trens, mas sobre como a China está redesenhando seu futuro – e, possivelmente, impactando boa parte do mundo. Continue acompanhando o Decode China para mais análises sobre como a tecnologia e as estratégias chinesas estão transformando realidades dentro e fora de suas fronteiras.
Baita aula!
Que aula!