E o Oscar da arquitetura de 2025 vai para... a China!
A trajetória de Liu Jiakun (刘家琨) — recém-premiado com o Pritzker — nos ajuda a entender como o país está redesenhando seu próprio ritmo.
Nesta edição da Decode China, vamos navegar pelas cidades chinesas - dos arranha-céus à arquitetura que olha para trás. Vamos passar pelo crescimento dos centros urbanos - chegando as megacidades - e, claro, contar mais sobre o renomado arquiteto e o que ele e sua geração têm a ver com a China moderna. Tudo isso a partir de uma pergunta: o que a arquitetura chinesa nos diz sobre o futuro do país?
As aparentes contradições da China contemporânea
Se você viajar para a China hoje, vai encontrar alguns paradoxos, e um deles está ligado à arquitetura e ao urbanismo. Você vai ver arranha-céus espelhados ao lado de vilas reconstruídas com tijolos de demolição. Vai ouvir sobre o boom imobiliário numa conversa e sobre a valorização das raízes culturais na outra.
Diante dessas supostas contradições, nos perguntamos: o que tudo isso revela?
Em março deste ano, o Prêmio Pritzker foi concedido ao arquiteto chinês Liu Jiakun (刘家琨). Para algumas pessoas, a escolha surpreendeu. Para outras, era só questão de tempo até que o reconhecimento internacional chegasse a alguém da sua geração: profissionais formados dentro da China pós-Mao Zedong, que viveram a abertura do país, estudaram fora e tiveram contato com profissionais internacionais.
Curiosidade: O Prêmio Pritzker, criado em 1979, é considerado o maior reconhecimento internacional da arquitetura — uma espécie de Nobel da área. Entre os poucos arquitetos asiáticos premiados, estão nomes como o japonês Tadao Ando (1995), o indiano Balkrishna Doshi (2018) e o chinês Wang Shu (2012), que foi o primeiro da China continental a receber o prêmio. A escolha de Liu Jiakun marca um novo capítulo: se Wang Shu foi reconhecido por sua abordagem artesanal e filosófica, Liu representa uma arquitetura mais urbana e social, enraizada nas transformações das grandes cidades chinesas.
Por trás desse prêmio, o que se revela é uma nova camada da urbanização chinesa. E para entender como chegamos até aqui — e porque isso importa — a gente precisa voltar algumas décadas.
A mudança das cidades como espelho da transformação do país
Desde a fundação da República Popular da China, em 1949, o país vive um dos processos de urbanização mais intensos da história moderna.
No início as cidades eram apenas polos da incipiente indústria nacional, sem muito espaço para expressões sociais ou culturais. Isso começou a mudar com as medidas de abertura lideradas por Deng XiaoPing.
As cidades não cresceram por acaso. A urbanização foi uma decisão estratégica, parte do plano estatal para acelerar a transição de uma sociedade agrícola para uma economia industrial e globalizada.
“A urbanização foi uma das quatro grandes estratégias de desenvolvimento da China, ao lado da industrialização, da globalização e da reforma econômica.” Keyu Jin, economista
Autoridades locais passaram a ser avaliadas pela capacidade de transformar suas cidades em polos produtivos, construindo infraestrutura e atraindo investimentos. As cidades viraram o centro nervoso do projeto de crescimento nacional.





Por tudo isso, quem foi para Shanghai no início dos anos 2000 e voltou vinte anos depois quase não reconheceu a cidade. Onde se viam plantações de arroz do lado de Pudong (lado leste do rio Huangpu) hoje se veem arranha-céus iluminados, conhecidos como o cartão postal da China.

Para sustentar o crescimento urbano, o investimento em infraestrutura foi pesado. As novas rodovias, aeroportos e ferrovias podem até ter mudado o fluxo de pessoas na cidade (como mencionamos em nossa última newsletter), mas foram as novas linhas de metrô, vias elevadas e prédios corporativos que mudaram o seu layout. Foi assim que várias áreas residenciais e de comércio tradicional antigo foram substituídos, dando espaço para o surgimento de landscapes futuristas e de grande escala.
Um capítulo mais recente: o boom imobiliário chinês
Durante o período de crescimento acelerado das cidades, a construção civil foi um dos motores mais visíveis da nova economia chinesa. Prédios, complexos residenciais e bairros inteiros brotavam a uma velocidade extraordinária, alimentados por incentivos fiscais, crédito abundante e metas agressivas de crescimento. O setor da construção chegou a representar até 25% do PIB do país – um número impressionante, especialmente quando comparado a países como o Brasil, onde a participação gira em torno de 5,8%.
Essa agressividade, no entanto, trouxe um grande desequilíbrio. Em determinado ponto, o ritmo de construção ultrapassa a demanda real. Prédios foram erguidos sem moradores à vista e bairros inteiros nasceram vazios – as chamadas “cidades-fantasmas”. O cenário abriu espaço para especulação: em 2020, um apartamento em Shanghai podia custar aproximadamente 40x a renda média disponível anual de um trabalhador. Em cidades como São Paulo, a proporção gira entre 7 e 12 vezes.
O caso mais emblemático foi o da Incorporadora Evergrande, que se declarou insolvente em 2021, acumulando dívida em valor aproximado de US$300 bilhões. O que era visto como o símbolo do milagre chinês, passou a ameaçar a estabilidade econômica.
Reação ao movimento das megacidades
Para algumas pessoas, a urbanização acelerada, ultrapassou não apenas os limites quantitativos, mas também os simbólicos. Deixando de tomar o cuidado necessário com a memória e identidade dos lugares, gerou destruição de patrimônios culturais.
É neste ambiente que florescem arquitetos da geração - e do calibre - de Liu Jiakun, com o propósito de reinterpretar a tradição chinesa por meio de uma linguagem sustentável e contemporânea. Um movimento que hoje ganha reconhecimento em escala global.
A atenção se volta à qualidade de vida e à inclusão social. Novas políticas públicas são lançadas para desenvolver cidades de médio porte – como forma de desafogar as megacidades – e para revitalizar as áreas rurais – no esforço de combater o despovoamento do interior.
Passa-se a valorizar o urbanismo sustentável e integrado com o contexto e a identidade da região. O uso de técnicas locais e materiais tradicionais (como tijolos, pedras e bambu) voltam à cena, em contraposição à arquitetura espetacular envidraçada, que durante anos replicou o estilo ocidental.

Sobre Liu Jiakun
O Prêmio Pritzker reconheceu a capacidade de Liu Jiakun de promover conexões emocionais que unem comunidades através do processo e propósito da arquitetura.
Em 1999, fundou o Jiazun Architects, incorporando sua nova visão de design. Seus projetos são distintos uns dos outros, utilizando bom senso e sabedoria como ferramentas poderosas. Prefere o artesanato tradicional e materiais locais em vez de produtos industrializados, visando a sustentabilidade econômica e ambiental.
Sua obra demonstra uma forte conexão com suas raízes chinesas, reinterpretando elementos tradicionais em estruturas modernas. Sua arquitetura demonstra uma simbiose entre história, materiais e natureza, priorizando os usuários, suas comunidades, tradições, história e identidades.
Curiosidade: sabe o que Liu Jiakun, Wang Shu, Zhang Ke e outros arquitetos chineses desta mesma geração (nascidos entre 1960 e 1970) tem em comum? Eles nasceram e estudaram na China durante uma época em que o país ainda estava fechado, mas no início da vida adulta tiveram acesso à educação internacional. Muitos estudaram no exterior (como Zhang Ke, formado em Harvard), mas optaram por voltar ao país e trabalhar com realidade local. Atualmente, com apoio governamental, estão envolvidos em projetos que resgatam raízes e tradições culturais. Essa é uma realidade não só desta geração de arquitetos, mas também de profissionais chineses de outras áreas, da mesma geração de Liu Jiakun, que hoje se destacam na liderança de diversas corporações.





Talvez a maior inovação arquitetônica na China hoje não esteja nos drones, nem nos sensores, nem nas torres de vidro — mas na capacidade de construir pertencimento. Uma força silenciosa, refletida em novas vozes que levam a China a outros lugares.
Até a próxima edição.
Quero ir para a China com vcs!! (mais um) ótimo texto
Delicioso de ler, muito interessante e informativo! Parabéns.