Onde a China realmente cresce: as cidades que ninguém vê
O conceito de 'tier cities' e as cidades sobre as quais você ainda vai ouvir falar
Quando pensamos na China contemporânea, nossa imaginação quase sempre voa direto para Shanghai, Beijing, Shenzhen e Guangzhou. Essas cidades se tornaram a moldura mental de um país com mais de 1,4 bilhão de pessoas.
Mas existe uma China que raramente atravessa o nosso campo de visão. Uma China que pulsa fora das metrópoles e que, pouco a pouco, assume o protagonismo silencioso do próximo ciclo de crescimento. Uma China que se revela em nomes como Hefei, Wuxi e Jinhua, quase invisíveis no radar internacional, mas gigantes em escala, ambição e impacto econômico.
Essas três cidades, por exemplo, têm populações que superam países inteiros: Hefei com 9,57 milhões de habitantes (mais do que a Suíça), Wuxi com 7,5 milhões e Jinhua com 7,13 milhões (mais do que o Paraguai). Cada uma delas com PIB equivalente ao de nações: US$ 180 bilhões, US$ 215 bilhões e US$ 83 bilhões, respectivamente. E todas profundamente conectadas a cadeias industriais, tecnológicas e logísticas que moldam o cotidiano chinês e, muitas vezes, o nosso também.
Hefei abriga o “Sol Artificial”, um dos reatores de fusão nuclear mais avançados do mundo, a NIO (fabricante de carros) e a USTC, uma das instituições acadêmicas mais prestigiadas da Ásia, chamada de “o MIT da China”. Já Wuxi é um centro sofisticado de manufatura e semicondutores, com forte presença de empresas como SK Hynix e clusters de IoT e biotecnologia. E Jinhua é o coração pulsante do comércio de baixo custo, onde o Mercado de Yiwu se tornou destino diário de comerciantes estrangeiros em busca de produtos que abastecem lojas, aplicativos, bazares e marketplaces no mundo inteiro.
Essas cidades chinesas não são Tier 1 e não aparecem nos itinerários de viagem, mas são decisivas para entender o que está acontecendo com a China. Hefei é uma cidade de Tier 2, Wuxi de Tier 3 e Jinhua de Tier 4.
O que quer dizer a classificação das cidades chinesas por tiers (que vão do 1 ao 5)?
Os tiers (níveis) não são um sistema oficial de classificação das cidades na China, mas funcionam como uma lente que revela o estágio de desenvolvimento industrial, urbano, social e tecnológico de um município — e sugerem o grau de maturidade da sua economia e, por consequência, do mercado consumidor.
A classificação varia dependendo da fonte, mas geralmente envolve critérios como população, PIB, renda, infraestrutura (aeroportos, metrôs, trens-bala), densidade de serviços, diversidade industrial, logística, custo de vida e capacidade de atrair talentos.
Essa classificação é dinâmica: cidades sobem ou descem de tier conforme entregam resultados, assim como as autoridades responsáveis por essas cidades, que também são avaliadas por KPIs e são promovidas ou realocadas conforme sua performance — como discutimos na edição sobre o sistema de metas da China.
A ideia de tiers nasceu da necessidade de empresas e consultorias entenderem melhor a organização urbana e econômica do país. E quando uma cidade entra em um plano nacional, tudo muda rapidamente, ela pode passar de um tier para o outro em um piscar de olhos.

Um dos melhores exemplos de evolução de tier é Guiyang, na província de Guizhou. Era uma das regiões menos desenvolvidas e mais montanhosas do país. Mas reunia três características valiosas: clima de 15ºC (ideal para data centers), energia hidrelétrica abundante e estabilidade geológica. A partir do 14º Plano Quinquenal, a economia digital foi considerada motor central do crescimento nacional e a instalação de data centers passou a ser crucial. Guiyang foi identificada como o lugar ideal para ser a sede do Big Data Comprehensive Pilot Zone, passando a investimentos públicos em infraestrutura de fibra ótica, além de incentivos fiscais e projetos nacionais de tecnologia. Em poucos anos, se tornou o lar de data centers da Apple, Huawei, Tencent e Alibaba Cloud. Desde 2014, suas taxas de crescimento do PIB frequentemente superaram 10% — resultado direto de uma estratégia nacional traduzida em política local.
Assista esse vídeo sobre Guiyang.
Essa é a lógica: na China, uma cidade não é apenas um município, mas sim uma unidade estratégica de desenvolvimento.
Um mapa mercadológico: a diferença no consumo entre os tiers
Quando olhamos para essas cidades emergentes, fica claro que não é só a geografia que muda, mas também o consumo. A renda da população pesa de forma decisiva nas escolhas das empresas e isso se traduz em mapas mentais diferentes entre as metrópoles e as cidades em ascensão.
Imagine que você é uma grande marca ou rede de serviços que precisa fazer escolhas de onde e como abrir novas lojas. Em Shanghai ou Beijing, a disputa será pela novidade premium: marcas de luxo, edições especiais, lançamentos que chegam primeiro e encontram um público acostumado a navegar num mar de opções sofisticadas. Mas basta descer um ou dois degraus na lógica dos tiers e o retrato muda.
Nas cidades de tier 2 e 3, cresce o apetite por aquilo que chamam de affordable luxury: produtos com boa qualidade, design interessante e preços mais possíveis.
Compreender essas diferenças é o que permite identificar oportunidades reais num país onde a padronização é ilusória e o consumo é profundamente situado. Em outras palavras: a China é grande demais para qualquer leitura única.
Vamos entender como cada tier abre portas para caminhos de crescimento totalmente distintos?
Tier 1 e as “Novas Tier 1”: as vitrines que já conhecemos
Quando falamos das Tier 1 — Shanghai, Beijing, Shenzhen e Guangzhou — estamos falando de cidades que já se tornaram símbolos globais. São os laboratórios visíveis da modernidade chinesa, onde surgem as primeiras lojas de conceito, os testes de carros autônomos, os shoppings monumentais e os lançamentos que depois se espalham pelo país.
Ao redor delas, as chamadas “Novas Tier 1” — dentre elas Chengdu, Hangzhou, Chongqing, Wuhan — funcionam como metrópoles nacionais, articulando ecossistemas regionais, sediando gigantes digitais e moldando comportamentos de consumo que se espalham pelo resto da China.
Mas o dado mais importante é este: apesar de toda essa visibilidade, essas 8 cidades concentram apenas 9% da população chinesa, embora respondam por 21,5% do PIB. O que significa que o país real, numericamente falando, está muito além dessas metrópoles.
E é justamente esse “além” que vem ganhando protagonismo.
A grandiosidade que vive nas cidades Tier 2, 3 e 4
As cidades de Tier 2 são capitais regionais fortes. Podem não ter a monumentalidade de Shanghai, mas possuem um dinamismo urbano impressionante. Qingdao, por exemplo, combina uma economia marítima robusta com clusters produtivos que abastecem o país inteiro. São cidades com um mercado consumidor sofisticado o bastante para atrair marcas internacionais, mas com características regionais que moldam um estilo de vida próprio.

As Tier 3 vivem uma transformação intensa. São cidades médias que ainda estão experimentando uma urbanização acelerada, com bairros inteiros surgindo em poucos anos, linhas de metrô recém-inauguradas, parques tecnológicos em expansão e uma classe média crescente que redefine padrões de consumo. Visitá-las é como revisitar, em câmera acelerada, aquilo que Shanghai viveu nos anos 1990: uma sensação de movimento contínuo, construção e expectativa.
Nas cidades de Tier 4, o retrato é ainda mais fascinante. São menores, mas profundamente conectadas à lógica nacional. Aqui, as políticas de desenvolvimento ganham corpo de forma particularmente visível: um novo viaduto, uma estação de trem-bala ou uma zona industrial pode alterar completamente o destino da cidade e das suas famílias. São os lugares onde a modernização se encontra com a vida cotidiana de maneira mais palpável.
A mesma cidade de tier 4, Linfen, que 10 anos atrás era considerada a cidade mais poluída do mundo, hoje é uma cidade que possui uma frota de 132 ônibus elétricos em cores divertidas como verde e rosa pastel.
O verdadeiro motor do crescimento está nos “emerging-tier markets”
Então, chegamos ao ponto central: o próximo salto econômico da China não virá das Tier 1, mas sim das cidades Tier 2, 3 e 4.
De acordo com a Daxue Consulting, essas cidades:
concentram 55% a 65% da população chinesa
respondem por 40% a 45% do PIB
e devem alcançar RMB 110 trilhões em 2025
são responsáveis por dois terços do crescimento do consumo no país
É aqui que surgem fenômenos culturais e econômicos extremamente reveladores: cafés e milk tea shops se multiplicando, night markets revitalizados, EVs acessíveis se tornando o “segundo carro da família”, eletrodomésticos gigantes entrando nos lares como símbolo de status e conforto.
Curiosidade: nas cidades emergentes, o índice de casamentos e a receita disponível crescem mais rápido e a aquisição de imóveis é mais viável. Esses fatos levam a um maior investimento em conforto nas cidades emergentes de Tier 3 e abaixo, com um consumo mais vibrante de eletrodomésticos e EVs.
Essa vitalidade cotidiana, marcada por escolhas de consumo, novos hábitos e novos espaços urbanos, é o verdadeiro rosto da China emergente.
E o Brasil com tudo isso?
À medida que observamos essa transformação silenciosa das cidades chinesas, surge uma pergunta: por que o Brasil não pensa o desenvolvimento de suas cidades de forma mais estratégica? Convidamos uma estudiosa das cidades brasileiras, Debora Emm, a colaborar com essa reflexão. Ela tem estudado o potencial das cidades médias brasileiras e como esse tema tem têm tido pouca visibilidade nas últimas décadas.
“Pela falta de um modelo de pensamento sobre o território nacional, o país é refém de São Paulo e Rio de Janeiro. O fluxo de investimentos, o olhar para a cultura, o interesse do mercado é extremamente concentrado nestes pólos, o que cria um desafio gigante para as outras cidades do país para serem vistas e reconhecidas como dignas de investimentos e interesse. E nessa toada de concentração, estes centros vão se tornando cada vez mais insuportáveis para a vida mas também mais caros e desafiadores para que negócios aconteçam.
Na realidade prática, existem polos de diferentes características no país, assim como na China, mas a decodificação desse mapa ainda é pouco pensada e conhecida. Tanto para o campo das políticas públicas, como para as ações da iniciativa privada. E o segredo para repensarmos é olhar para as cidades para além da lógica de tamanho, mas pela combinação de elementos que as tornam estratégicas dentro de nosso mapa.”
Se a China que molda o futuro não está somente nas megacidades, mas nas cidades que quase ninguém vê, o que isso diz sobre a forma como costumamos interpretar o mundo? Quantas “Hefeis”, “Wuxis” e “Jinhuas” brasileiras e espalhadas pelo mundo existem à espera de reconhecimento, investimento e visão estratégica?
E, sobretudo: será que estamos olhando para os lugares certos quando tentamos entender o que define o futuro de um país?
Aqui um podcast da Inesplorato sobre o Brasil e suas cidades médias.
Para saber mais sobre a Gui’an New Area,onde a Huawei possui instalado seu maior data center, leia essa matéria.
Uma visão de um estrangeiro que mora na China e ficou interessado em conhecer de perto uma cidade de Tier 2, Linfen.







