Guochao: o orgulho cultural que redesenha o Made in China
O que a política do filho único, a ascensão econômica da China e a nova geração Z têm a ver com a estética das marcas globais na China?
A resposta pode estar em um fenômeno chamado guochao (国潮). O significado dessa palavra é algo como “onda nacional” e ela representa um movimento de valorização de elementos tradicionais chineses. Revela um país em busca de uma narrativa própria, onde estética e identidade se encontram, numa expressão contemporânea de orgulho da origem.
Na Decode China, além de falar de inovação e tecnologia, também investigamos os códigos culturais por trás do consumo. Desvende, nessa edição, a tendência que vem redesenhando, desde 2018, o “Made in China”. Perceba as novidades de uma China que provavelmente é muito diferente do país que existe no imaginário da maioria dos brasileiros.
Pra começar… conheça a jaqueta que virou hit no Ano Novo Chinês
Para celebrar o Ano Novo Chinês, a Adidas lançou uma jaqueta que virou febre nas redes e nas ruas. A peça trazia botões no estilo pankou (盘扣), inspirada nos trajes tradicionais da dinastia Tang (唐). O resultado? Sucesso absoluto: vendida exclusivamente na China, a jaqueta esgotou em poucos dias, virou objeto de desejo e se tornou um símbolo de como marcas globais vêm aprendendo a falar a linguagem estética do guochao.
O termo 国潮 (Guochao) combina dois caracteres: 国 (guó), que significa “país” ou “nação”, e 潮 (cháo), que pode ser traduzido como “onda” ou “tendência”. Juntos
,formam algo como “onda nacional”.
A alma do Guochao
Imagine essa cena: você está em Beijing e caminha pela vibrante vida noturna do bairro de Sanlitun. Vê uma jovem usando um tênis da marca Li-Ning, com uma estampa que imita porcelana chinesa. Ela navega na rede social Xiaohongshu, procurando o mais novo batom da Florasis, marca de maquiagem que usa técnicas milenares de pintura como inspiração para as embalagens. Ao lado, um amigo comenta entusiasmado sobre o último sucesso do cinema nacional chinês.
Essa cena cotidiana é mais reveladora do que parece à primeira vista. Vamos fazer um passeio histórico e comportamental para entender todas as camadas do movimento que tem construído, desde 2018, essa nova narrativa cultural na China.
Como tudo começou…
Foi em 2018 que a marca chinesa Li-Ning estreou na Semana de Moda de Nova York com uma coleção que misturava streetwear e símbolos tradicionais chineses. O sucesso e a viralização daquele desfile não foram acaso - refletiam uma virada geracional. A marca conseguiu capturar, no tempo certo, o espírito de uma nova geração: os chineses nascidos após 1996, a GenZ.
Estamos falando de uma geração inteira que cresceu em um país em plena ascensão econômica e cultural. Para essas pessoas, o prestígio já não vinha (só) de fora. O mercado interno havia mudado - marcas nacionais agora ofereciam tecnologia de ponta, design sofisticado a preços acessíveis. O que antes era um “made in China” subestimado, passou a ser celebrado com orgulho, estilo e identidade.
As três ondas do Guochao
Guochao 1.0: na moda, com orgulho
A coleção da Li-Ning se chamava, sem rodeios, “China Li-Ning” e exibia com orgulho sua origem - algo que, até então, as marcas chinesas não ousavam fazer no circuito global. Foi uma inversão de expectativa. Ao invés de esconder sua nacionalidade, a marca a colocou no centro da narrativa, deixando muito claro de onde vinha.
A Li-Ning fez o improvável: conquistou reconhecimento internacional ao mesmo tempo em que reforçava a identidade cultural chinesa. O desfile bombou. Jovens chineses se sentiram vistos e representados. O orgulho cultural, até então invisível, saiu do armário e entrou na passarela. Isso inspirou outras marcas como Pechoin (百雀羚) e Warrior (回力) a assumirem suas raízes e passarem por um renascimento. Foram redescobertas por uma geração que queria mais que consumir - queria resgatar - e passou a reinventar - o passado dos próprios pais.

Já que falamos na Li-Ning, vamos dar um rápido zoom in nas marcas esportivas chinesas? Além da Li-Ning, você já ouviu falar da Anta, outra marca local chinesa? Em 2022, a Anta superou a Adidas em participação de mercado na China, alcançando 20,4% contra 11,2% da Adidas, enquanto a Li-Ning atingiu 10,4%. Esses números ajudam a ilustrar a crescente preferência dos consumidores por marcas nacionais.
Guochao 2.0: marcas fortes nacionais
Por volta de 2020, o movimento já havia se expandido para além de um resgate cultural e simbólico. Aos poucos, consumir marcas locais foi ganhando novos significados.
Novas marcas surgiram, desafiando a liderança de marcas estrangeiras potentes. As redes sociais chinesas passaram a fervilhar com conversas sobre tecnologias desenvolvidas localmente - um tópico até então dominado por empresas ocidentais ou de outros países do oriente, como Japão e Coréia do Sul. Assim, possuir um smartphone Huawei ou dirigir um carro elétrico NIO virou motivo de orgulho.
O poder tecnológico da China foi moldando novos cenários nos universos de smartphones, automóveis e eletrodomésticos inteligentes. A juventude passou a entender que a inovação do seu país não estava apenas alcançando os padrões globais, mas também começava a estabelecê-los.

Foi nesse momento, também, que a estética se espalhou por produtos de luxo, beleza, moda e acessórios, chegou nas lojas (varejo) e passou a fazer parte das campanhas de grandes marcas globais. Esse movimento seguiu reforçando não apenas o valor trazido pela cultura chinesa, mas também o quanto ela podia ser cool e contemporânea.



Um pouco de história: o que o Guochao tem a ver com a política do filho único
Um dos aspectos menos óbvios do Guochao é sua relação com a geração de filhos únicos, nascida entre o fim dos anos 1970 e os anos 2000. Criados sob forte pressão por desempenho acadêmico e profissional e em meio à abertura econômica, muitas dessas pessoas cresceram sem um repertório cultural sólido, pois suas famílias, focadas no progresso, deixaram algumas tradições em segundo plano.
O Guochao surge como uma ferramenta de reconstrução simbólica: reconecta passado e presente, tradição e inovação, em uma linguagem esteticamente potente. Ao mesmo tempo, ecoa valores fundamentais da cultura confucionista, como o respeito às origens, a valorização das gerações anteriores e a continuidade do legado familiar.
Guochao 3.0: a explosão da propriedade intelectual cultural
Aqui testemunhamos uma fase mais sofisticada do guochao. O sucesso estrondoso de filmes como a animação "O Nascimento do Filho Demônio Nezha" , baseado no folclore chinês e que arrecadou impressionantes USD 742,7 milhões, sinalizava a crescente confiança cultural da China.
Essa mesma energia aparece na indústria de games, com títulos como Black Myth: Wukong - um dos lançamentos mais aguardados de 2024 e que viralizou antes mesmo do lançamento. A história do jogo traz à tona o lendário Rei Macaco (孙悟空), com gráficos de ponta e narrativa inspirada no clássico da literatura chinesa Jornada ao Oeste.
Esse fenômeno vai muito além do entretenimento - e reflete uma nova forma de soft power chinês, com produções nacionais ganhando espaço em plataformas de streaming internacionais e em vitrines digitais do mundo gamer.
E agora, para onde vai o Guochao?
Os dados nos mostram como esse movimento foi abraçado e segue firme e forte entre os jovens consumidores chineses:
56% priorizam a revitalização autêntica de elementos tradicionais
42% valorizam princípios sofisticados de design chinês
33% buscam significado cultural mais profundo além da estética superficial
33% apreciam colaborações criativas entre indústrias
(fonte: “How Young Chinese Consumers are Finding Themselves” da Daxue Consulting)
No entanto, o atual momento de expansão também passa por um dilema: crescer sem se diluir, expandir sem se tornar fórmula vazia.
Como apontou a jornalista Luo Weiteng, há um risco real de o movimento virar uma “China-chic de prateleira”, onde símbolos tradicionais viram ornamento de produtos genéricos. O entusiasmo da juventude chinesa, que abraçou o guochao como forma de expressão cultural e afirmação de identidade, exige agora profundidade, não repetição ou apropriação.
Marcas começam a olhar para onde tudo começa: as mãos, os saberes, as pequenas cidades. A valorização de técnicas de patrimônio imaterial, o crescimento de polos como Caoxian e o retorno de jovens para empreender fora dos grandes centros são pistas do que pode ser o Guochao 4.0. Esse movimento já tem nome: feiyi (非遺) - “intangible cultural heritage”.

No futuro, talvez o segredo não esteja apenas na estética dos produtos - mas na forma como eles são feitos, nas pessoas que os criam, nos territórios que os sustentam e nas histórias que os moldam.
Parece que a próxima fase do guochao pertencerá às marcas (chinesas ou globais) que entenderem uma distinção crítica: o que passou a importar é o quão significativamente um produto se envolve com a identidade cultural chinesa em toda a sua complexidade e contradição.
Nossos registros:
Atualmente, a valorização da tradição também se manifesta nas ruas. Se você visitar cidades históricas da China como Beijing, Xian, Nanjing e Hangzhou, vai se surpreender ao ver jovens vestindo roupas tradicionais, posando para fotos que serão postadas em redes sociais. Vestimentas como o hanfu (汉服) e o qipao (旗袍) resgatam o orgulho a tradição.
Acabei de voltar de uma viagem de 16 dias pela China e vi muitos, muitos jovens usando vestes tradicionais de uma forma incrível. Aliás, tudo foi incrível nessa viagem! A China é encantadora e profunda, sem dúvida, ainda espero voltar para conhecer melhor esse país.
Adorei!
Existe algum movimento formal, patrocinado, para que pessoas visitem e escrevam sobre a China? Algo para estrangeiros divulgarm a cultura?