O silencioso avanço dos carros do futuro
[sim, vimos o que rolou na Auto Shanghai 2025 e viemos aqui contar para você]
Escrever sobre carros talvez seja uma ousadia — especialmente quando esse não é nosso território natural e o Brasil é um país repleto de especialistas e apaixonados pelo assunto.
Mas nossa intenção, no Decode China, não é dissertar sobre motores ou fichas técnicas. É aproveitar a oportunidade para compartilhar informações frescas e refletir sobre o que está em jogo em uma indústria que, embora às vezes pareça distante, diz muito sobre as transformações mais profundas da tecnologia, do comportamento e das estratégias de poder no século 21.
A edição 2025 do salão do automóvel de Shanghai nos lembrou que o futuro pode chegar mais silencioso (e elétrico) do que imaginávamos.
Alertamos que essa é uma edição especial, um pouco mais longa, uma espécie de mini dossiê.
Antes de começarmos: você sabia que em 2024, 60% dos carros elétricos vendidos no mundo foram fabricados na China?
Lembra dos carros voadores de "Blade Runner"? Eles chegaram - e são chineses
Carros voadores têm povoado nosso imaginário desde os anos 40 (parece que foi nos anos 50 que o primeiro apareceu em um filme de ação). Já nos anos 80, Blade Runner nos presenteou com suas poéticas cenas futuristas e um Harrison Ford craque em desviar de obstáculos no ar.
O que se viu na Auto Shanghai 2025 foram montadoras chinesas apresentando seus carros voadores e interfaces que desafiam os limites do design automotivo. Enquanto isso, as gigantes automotivas globais apostaram no legado de suas trajetórias de sucesso. Talvez essa edição da feira tenha sido a representação de uma importante transição: um setor poderoso que reconfigura hierarquias e imaginários.

Em 10 dias de evento, cerca de 1000 marcas de 26 países exibiram mais de 1300 veículos para 1,3 milhão de visitantes.
Foram mais de 100 lançamentos globais — com mais de 70% de modelos de nova energia — e anúncios que podem moldar os modelos de negócio dos próximos anos: da nova fábrica de conectores da Aptiv em Wuhan à joint venture entre Volkswagen e Horizon Robotics para desenvolvimento de sistemas de direção assistida.
Os carros voadores e a expansão da mobilidade
No Auto Shanghai 2025, todas as marcas principais e emergentes apresentaram modelos elétricos ou híbridos plug-in. Mas o que chamou atenção foi o volume de inovação concentrado em poucos metros quadrados: empresas como Xpeng, Faw e Chery trouxeram seus modelos de carros voadores e protótipos que, mesmo ainda distantes de serem fabricados em larga escala, indicam uma direção clara de experimentação.
Trata-se de uma expansão literal da mobilidade. Uma aposta na tridimensionalização do transporte pessoal, num futuro onde a rua não será mais o único caminho possível. Tecnicamente, poderia se dizer que os modelos apresentados já funcionam. Na vida real, sua adoção dependerá menos da engenharia e mais da regulação, da infraestrutura e da disposição coletiva para transformar o céu em rota.





Até 2030, a China pode ter 100 mil eVTOLs em residências ou operando como táxis aéreos, segundo a China Low Altitude Economic Alliance em um relatório divulgado em novembro de 2024, durante a conferência anual inaugural do Global Low Altitude Economy Forum.
Agora, pense com a gente: entre carros parecidos com os que conhecemos e carros voadores, para que lado você iria olhar?
A China e os carros autônomos
Depois de voar alto, aterrissamos nas ruas. O que está acontecendo com os carros que ainda andam sobre o chão na China?
A infraestrutura urbana chinesa está se preparando para uma transição ambiciosa: não apenas testar veículos autônomos, mas integrá-los ao cotidiano das cidades. Em 2024, o governo nacional selecionou 20 cidades para um programa-piloto que visa criar plataformas de controle em nuvem e infraestrutura conectada para veículos inteligentes. Ao todo, já são mais de 32 mil quilômetros de estradas liberadas para testes e mais de 16 mil licenças emitidas.
Cidades como Beijing, Shanghai, Guangzhou, Wuhan e Shenzhen operam frotas de robotáxis e ônibus autônomos, com dados expressivos: só em Guangzhou, mais de 1 milhão de passageiros já utilizaram esse tipo de serviço em linhas experimentais.
Shenzhen, pioneira na regulação local, já autoriza circulação de veículos sem condutor em áreas específicas, incluindo rodovias.
A lógica não é apenas liberar testes, mas criar ecossistemas completos para a autonomia. Como consequência, as montadoras estão incorporando sistemas de direção autônoma avançada mesmo nos modelos mais acessíveis. A previsão é que, até o final de 2025, mais de 70% dos carros novos produzidos em Shanghai venham equipados com nível 2 ou 3 de automação.
A China segue como um dos países com maior volume de testes de veículos autônomos, mas um acidente com o modelo Xiaomi SU7 em março de 2025 gerou um alerta: é preciso deixar claro para o público a diferença entre assistente de direção (níveis 1 e 2) e direção autônoma (níveis 3 a 5). A preocupação foi reforçada em relação aos aspectos de segurança dos veículos.
Em alguns protótipos que vimos em Beijing, já não há pedais, volantes ou assento do motorista. Alguns bancos estão dispostos como uma sala de reunião.
Se toda a configuração interna de um carro puder ser redesenhada, para que você usaria esse espaço em movimento?
As marcas chinesas inverteram a lógica do jogo
Houve um tempo em que os carros chineses eram tratados com desdém por especialistas do setor. Vistos como cópias com design exagerado ou tecnologia improvisada, eles agora voltam ao centro da cena com um discurso diferente: performance, sofisticação, confiabilidade e ambição global.
Os exemplos vistos na Auto Shanghai são muitos, mas vale destacar dois:
* o Xiaomi SU7 Ultra, com aceleração de 0 a 100 km/h em 1,98 segundos
* o Huawei Maextro S800, desenvolvido em parceria com a JAC, um carro de luxo com design inspirado em iates e recursos como geladeira interna, cofre digital e assentos com massagem reclináveis.
Não por acaso, a evolução da indústria automotiva chinesa está diretamente ligada às metas do 14º Plano Quinquenal da China: liderar a transição energética e se tornar uma potência tecnológica global.
Parcerias, fusões e o jogo da reputação
O evento mostrou um avanço das colaborações entre marcas tradicionais e chinesas, mas com outra dinâmica. Não se trata mais apenas de abastecer a China com carros estrangeiros, mas de reposicionar as marcas globais dentro de um ecossistema onde o software e a interface têm tanto valor quanto o chassi.
A Audi, por exemplo, lançou a marca AUDI (sem os quatro anéis) exclusivamente para a China, em parceria com a SAIC. A promessa é oferecer o melhor dos dois mundos: engenharia alemã combinada ao ecossistema digital chinês.
“O DNA da Audi se combina às inovações da China, especialmente adaptadas a um público com alto grau de fluência tecnológica.”
Fermín Soneira, CEO do projeto
Essa fluência, por sinal, é parte da explicação para o ritmo da inovação, onde o comportamento do consumidor chinês impulsiona a evolução do produto, e não o contrário.
O efeito BYD: uma virada que desestabilizou Guangzhou
Vamos entender um pouco o que a BYD provocou na China antes de chegar no Brasil?
Nos anos 2000, montadoras japonesas como Honda, Toyota e Nissan escolheram Guangzhou como base para suas joint ventures com parceiros locais. A cidade, capital de Guangdong - província mais rica da China, consolidou-se como polo da indústria automotiva chinesa, especialmente na produção de carros com motores a combustão.
Durante duas décadas, Guangzhou ocupou o centro da manufatura automotiva nacional. Mas esse protagonismo começou a mudar quando Shenzhen, cidade vizinha e sede da BYD, passou a apostar de forma estratégica na mobilidade elétrica. Desde 2022, Shenzhen encerrou totalmente a produção de carros a combustão e direcionou seus esforços para veículos elétricos e híbridos plug-in. Em 2024, com o aumento da demanda por essa nova geração de automóveis, a cidade produziu 2,9 milhões de unidades — um salto de 65% em relação ao ano anterior.
No mesmo período, Guangzhou viu seu crescimento esfriar. O PIB da cidade avançou apenas 2,1%, o pior desempenho entre as 19 maiores cidades da China.
O mapa da indústria automotiva chinesa está mudando — e, com ele, as lógicas de liderança.
Assim como Guangzhou, temos histórias parecidas no ocidente: a Blackberry não se preparou para o lançamento do iPhone nem a IBM para a ascensão dos PCs pessoais ou a Kodak para a adoção das câmeras digitais, e todas tiveram seus momentos de glória deixados no passado.
A revolução elétrica na China já impacta o Brasil — e não é pouco. Bem, e o Brasil com tudo isso?
Aos poucos nos acostumamos a ver os veículos da BYD pelas ruas das cidades brasileiras. Pois é, atualmente 1 em cada 4 carros híbridos vendidos no Brasil é da BYD. Nos carros 100% elétricos, 7 em cada 10 vendidos aqui são da montadora.
Não apenas a BYD mas também a GWM já estão instaladas no país. Os carros elétricos chineses começam a ganhar presença e interesse no mercado daqui.
Com uma história de inovação em combustíveis alternativos aos fósseis, vinda do desenvolvimento do etanol nos anos 70, o Brasil tem referências importantes para pensar em transição energética.
O potencial do Brasil para liderar a descarbonização da aviação na América Latina por meio do SAF (combustível de aviação sustentável) mostra isso. Mas a mobilidade elétrica exige outra infraestrutura, outro tipo de regulação e outro tipo de conversa.
O Brasil é reconhecido globalmente por sua trajetória em biocombustíveis — do etanol ao desenvolvimento atual do SAF, o combustível de aviação sustentável. Esse protagonismo foi destaque em recentes eventos Brasil-China, junto com a diversidade da matriz energética nacional. Da força das águas, dos ventos e do sol até o uso do bagaço da cana para gerar energia limpa, há uma base sólida para avançar. Mas a mobilidade elétrica exige outro tipo de estrutura, outra regulação, outra conversa. Os aprendizados da China não são um modelo, mas servem como sinalização: o futuro já está em movimento.