O sistema de metas da China: prefeitos que pensam como CEOs
[Para entender como o sistema político da China impulsiona o seu desenvolvimento, precisamos entender sua lógica]
Dessa vez precisamos começar com uma explicação. Nos valemos de uma “licença poética” ao longo dessa edição da Decode China. O termo “prefeito” (shìzhǎng, 市长) não corresponde exatamente ao que temos aqui no Brasil. O sistema político-administrativo chinês é mais complexo e hierarquizado e o que a economista Keyu Jin chama de “economia dos prefeitos” é, na verdade, uma adaptação conceitual para falar de como autoridades chinesas locais de diferentes instâncias — secretários do partido, chefes de distrito ou governantes municipais — se tornaram peças-chave no crescimento econômico do país. O nome pode não ser preciso, mas será usado na mesma linha da autora.
“...tanto faz se o gato é branco ou preto, desde que cace ratos…”
Essa foi a ideia trazida por Deng Xiaoping, durante a liberalização econômica (1978), que colocou na China no rumo do que hoje se chama “socialismo com características chinesas”. Traduzindo: não importa se a solução é "socialista" ou "capitalista", o que importa é que funcione para melhorar a vida dos chineses.
A China não pretendia adotar o socialismo ou o capitalismo, tal como existia em outros países, mas sim incorporar paulatinamente características da economia de mercado ao estado socialista, chegando ao um equilíbrio entre Estado e indústria, sociedade e indivíduo. O objetivo era mudar a vida dos chineses, fosse o gato branco ou preto.
Para o crescimento ser rápido, ele precisava ser descentralizado
Na época das primeiras reformas econômicas, que fizeram a China chegar ao que é hoje, não havia tempo para esperar pelo amadurecimento do mercado e das instituições. A China de Deng Xiaoping tinha pressa em se desenvolver. Isso só aconteceria no ritmo desejado se várias iniciativas de crescimento econômico fossem fomentadas pelo país ao mesmo tempo.
As lacunas do sistema chinês acabaram virando uma oportunidade para o Estado. Com braço forte, ele concentrou o poder político, mas intencionalmente concedeu às autoridades locais grande autonomia e autoridade para fomentar o desenvolvimento econômico das suas jurisdições - muito mais do que costuma-se imaginar no Ocidente.
Curiosidade: não foi fácil mudar e descentralizar. O próprio Deng Xiaoping, autoridade máxima chinesa (1978-1992) precisou enfrentar o conservadorismo da época para dar autonomia às autoridades locais. As tentativas e os fracassos não eram penalizados e, com apoio do Poder Central, os projetos bem-sucedidos eram elogiados e imitados nacionalmente. Essa cultura passou a impulsionar notas tentativas.

Afinal, quem melhor que a autoridade local para conhecer as potencialidades e sinergias da região e tomar decisões mais bem-informadas?
Ao mesmo tempo,
com tanta autonomia, como manter o alinhamento dos interesses dessas autoridades autônomas, reforçando a unidade do Estado chinês?
Daí surgem os papéis do sistema de governança e administração central chamado de “nomenclatura” e do Ministério Organizacional do Comitê Central. Esse órgão do Partido funciona como um gigantesco departamento de recursos humanos do poder político chinês. É ele que avalia o desempenho de todos que fazem parte das camadas hierárquicas, seja dos governos (desde as províncias, até os vilarejos), do Partido ou das empresas estatais. É esse Ministério que decide quem será promovido, rebaixado ou colocado de escanteio, de acordo com o sistema de nomenclatura.
Pra facilitar nossa analogia com o mundo ocidental, podemos pensar que a gestão desses “colaboradores” e do seu interesse em ascender na hierarquia do Poder Central é o eficiente mecanismo usado para manter o alinhamento deles com os objetivos nacionais e incentivar a excelência das suas atividades.
As regras do jogo:
KPIs claros: antigamente era só crescimento do PIB. Hoje inclui inovação, sustentabilidade, programas sociais.
Competição acirrada: cidades vizinhas são concorrentes por investimentos e reconhecimento
Prêmios reais: bom desempenho equivale a promoção para cargos provinciais e nacionais
KPIs de poder: como se avalia uma liderança na China
Integridade, diligência e competência são critérios de promoção dentro da “carreira”, mas de uma forma bem pragmática: o desempenho em gerar desenvolvimento econômico é crucial para assumir cargos mais relevantes, assim como alinhamento político.
Durante muitos anos, a principal métrica de avaliação das autoridades era o crescimento do PIB das suas respectivas regiões. A métrica do PIB estava criando incentivos que muitas vezes prejudicava a economia - muitas prefeituras faziam projetos fantasma ou desnecessários para inflar os números. Atualmente, não se trata apenas de bater metas de valores de PIB, mas também fomentar investimentos em setores considerados estratégicos, recuperar o meio ambiente, gerar auto-suficiência nacional e investir em programas sociais (educação, assistência médica e bem-estar social).
Para ascender, as autoridades precisam efetivamente entregar resultados mais completos, ou seja, cumprir "KPIs” e também superar expectativas.
O caso Lingang, em Shanghai
Neste sistema de avaliação constante de “entregáveis” alinhados ao objetivo do Estado chinês, todas as autoridades locais competem entre si. Se você acompanha nossa newsletter, provavelmente já sabe que anualmente as lideranças do Partido Comunista Chinês se reúnem - como em uma corporação privada - e determinam as metas anuais do país. Essas metas são cascateadas para os níveis inferiores do governo, para que todos assumam suas responsabilidades no cumprimento do objetivo nacional.
A partir daí surgem áreas como Lingang (área planejada para fins estratégicos, semelhante a uma cidade satélite), idealizada e administrada por autoridades do Governo Municipal de Shanghai, como parte da Zona Piloto de Livre Comércio de Shanghai (Shanghai FTZ).
Em perfeita sinergia com o planejamento nacional, Shanghai está transformando esta região em um centro global de tecnologia, manufatura avançada e comércio internacional, atraindo multinacionais e startups inovadoras com foco em setores como veículos elétricos, IA, robótica, biotecnologia e aeroespacial.
No caso específico de Shanghai, o Município (com hierarquia de província) agrega a oferta de infraestrutura de mobilidade e transporte, fontes de energia renovável e soluções sustentáveis, além de universidades e espaços residenciais de alta qualidade para atrair talentos.
Mas não são apenas as autoridades de Shanghai (Lingang) que querem atender as expectativas do Poder Central. Outras regiões disputam o spotlight como centros tecnológicos e usam a autonomia e autoridade concedida pelo Estado, para criar instrumentos de atração muito semelhantes, que vão desde simplificação de regulamentos até incentivos fiscais.
Shenzhen: de vila de pescadores a rival do Vale do Silício em 40 anos (ainda será pauta aqui no Decode China)
Suzhou: virou especialista em parques industriais de alta tecnologia
Hainan Free Trade Port: ter se desenvolvido no comércio internacional
E a lista não para por aqui…
Quando o maior competidor está na cidade ao lado... o jeito é inovar..
Lingang precisava oferecer algo a mais. E o sistema que acabamos de explicar mostra que essa disputa pelo spotlight diante dos olhos do Poder Central também abre espaço para o empreendedorismo.
Surgiram em Lingang, por exemplo, projetos focados na transferência internacional de dados (cross-border data technology) e a criação da primeira área na China autorizada a testar políticas flexíveis para o armazenamento, processamento e fluxo transfronteiriço de dados gerados ou obtidos na China, em setores prioritários (saúde, logística global e finanças).
Lingang lançou, em 2022, a primeira “Data Free Trade Zone” da China, que promete facilitar o fluxo internacional de dados para as empresas que operam em Lingang e, com isso, pretende atrair mais atividades para a região.
O Caso Tesla: porque subsidiar uma empresa americana fez sentido
Aqui está um exemplo que quebra estereótipos: o governo de Shanghai deu dinheiro e terreno barato para a Tesla construir fábricas na China. Sim, você leu certo – autoridades chinesas subsidiaram a vinda da Tesla (assim como de várias outras) para a China.
Por quê? Porque no sistema da "economia dos prefeitos", o que importa é entregar resultados. Se trazer a Tesla significava, em um determinado momento, empregos, tecnologia e crescimento econômico para Shanghai, então que viesse a Tesla! E deu muito certo naquele momento: houve crescimento econômico e, ainda hoje, os carros Tesla estão por toda parte nas ruas chinesas.
Outro exemplo prático: o atual Primeiro- Ministro Li Qiang
Quer ver essa teoria aplicada na prática?
A ascensão de Li Qiang, atual Premier do Conselho de Estado da China (equivalente a primeiro-ministro), é um bom exemplo desta jornada. Nascido em 1959, ingressou no Partido Comunista Chinês em 1983 e iniciou sua atuação no Condado de Rui’an (uma das 90 divisões de nível de condado da província de Zhejiang, que por sua vez são divididos em cidades, municípios e subdistritos).
De funcionário local a Primeiro-Ministro
Quer ver como funciona a ascensão política na prática? Li Qiang, atual primeiro-ministro da China, começou como funcionário público comum em 1983.
Sua jornada, de forma resumida, foi assim:
Anos 80-90: trabalhou em condados e prefeituras locais, focando em bem-estar social
Anos 2000: ascendeu ao nível provincial, sempre entregando resultados
2013-2017: foi governador de Zhejiang (terra do Alibaba), especialista em atrair alta tecnologia
Pandemia: gerenciou Shanghai durante a COVID-19
2022: passou a fazer parte do Comitê Permanente do Politburo do Partido Comunista Chinês (mais alta liderança do partido, atualmente composto por apenas 7 membros)
2023: virou primeiro-ministro
Missão dada, missão cumprida!
O que levar de tudo isso?
Independente da opinião pessoal de cada um sobre o sistema político chinês, em relação à administração e coordenação das diversas autoridades que fazem parte do Poder Central, há reflexões bem interessantes para serem destacadas:
Alinhamento de Interesses: Quando o interesse da autoridade (ser promovido) só é atingido se o interesse do Estado (crescimento econômico) for atingido, criasse incentivo para o cumprimento das metas nacionais.
Competição gera inovação: Cidades/autoridades locais competindo por investimentos e empreendimentos abrem espaço para soluções criativas.
Descentralização com direção: Dar autonomia local, dentro de uma estratégia nacional, pode gerar decisões mais fundamentadas (baseadas em melhor conhecimento das necessidades/fortalezas locais).
A China não é perfeita – tem seus problemas sociais, de endividamento, bolhas imobiliárias, desafios ambientais... Mas conseguiu algo notável: criar um sistema onde milhares de autoridades locais acordam diariamente pensando "como posso fazer minha região crescer o quanto é esperado?"
Como diz Keyu Jin: os sistemas nunca são perfeitos, mas sempre há algo para ser aprendido.
Afinal, seja branco ou preto, o importante é que o gato cace o rato.