Qual é a real ‘corrida pela IA’ na China?
Se você acompanha nossos conteúdos (em breve vamos completar um ano de Decode China!) já entendeu que o “jogo” da China é planejado, pragmático e muito bem executado. Por isso, não vai se surpreender ao descobrir que também é assim que funciona o desenvolvimento da inteligência artificial no país liderado por Xi Jinping.
Essa edição encara o desafio de entender a complexa estratégia chinesa para a IA. Com isso vamos passar pelos planos quinquenais, pelas gigantes da tecnologia chinesa, pelos comos e porquês que nos ajudam a desvendar o plano que o país tem para o futuro - e de que forma a inteligência artificial é parte da essencial deste plano.

Você já deve ter ouvido uma frase parecida com “vai dominar o mundo quem ganhar a corrida da inteligência artificial”. Se isso é verdade, não sabemos. Mas, com toda certeza o desenvolvimento da IA está no cerne das prioridades chinesas.
No 15º Plano Quinquenal (outubro 2025), que abrange o planejamento para os anos de 2026 a 2030, uma das principais diretrizes da China é a busca pela autonomia científica e tecnológica. O plano estrutura um caminho duplo: de um lado, superação dos pontos de estrangulamento tecnológico - para vencer as dependências de outros países, de outro lado, a construção de motores de crescimento - para liderar novas tecnologias e indústrias.
Os investimentos e a dedicação voltados à IA se encaixam com perfeição no objetivo de liderar tecnologias emergentes e estratégicas. Garantir liderança e segurança em modelos de IA de próxima geração, inteligência integrada, chips especializados… significa garantir os alicerces para o poder nacional e econômico de longo prazo.
No cenário internacional, é inegável dizer que o domínio sobre tecnologias como a inteligência artificial também interfere na percepção pública sobre quais nações possuem poder e influência global. Especialistas em relações internacionais descrevem isso como parte de uma estratégia mais ampla de soft power.
Mas, independentemente da narrativa internacional, entendemos que o que realmente anda acontecendo no dia a dia da China é o que merece destaque nessa edição: o país vem desenvolvendo IAs para resolver problemas concretos em setores como agricultura, saúde, mobilidade, manufatura e finanças. Isso vem acontecendo de forma intencional e consistente, com base em planos nacionais, que vamos relatar a seguir.
Howard Yu, em seu brilhante artigo que compara o papel da IA na China e nos EUA, nos brinda com uma pergunta muito simples, mas que pode ser bem reveladora:
“Vamos parar de nos perguntar: ’quem tem a melhor IA?’ e ao invés disso, perguntar ‘onde a tecnologia transforma o progresso em algo visível?’”
Números que revelam estratégias
Quando falamos em investimento (capital privado) em IA, os Estados Unidos são imbatíveis. Se destacam com valores muito superiores aos da China, como podemos ver no gráfico abaixo. O que o gráfico não mostra é que o cenário do investimento em IA é caracterizado por uma extrema concentração. Nos EUA, um pequeno grupo de 5 a 7 empresas (incluindo Amazon, Microsoft, Google, Meta, Nvidia, e as startups que elas financiam como OpenAI e Anthropic) controla a vasta maioria do capital, da infraestrutura e, consequentemente, do poder de desenvolvimento no setor de IA.
Na China, a estratégia é fundamentalmente diferente: há descentralização de investimento em capital humano e conhecimento.
Investe-se massivamente em pesquisadores, em papers acadêmicos e no desenvolvimento de patentes, criando uma base ampla de talento e inovação distribuída pelo país. Essa abordagem descentralizada cria redundância estratégica e reduz a dependência de empresas individuais.

No âmbito das patentes, a China domina absolutamente, com 70% de todas as patentes de IA globais. Isso representa um crescimento de +56 pontos percentuais em apenas 13 anos. A maioria delas é apenas registrada localmente e tem baixa taxa de concessão, o que faz com que esses números não possuam necessariamente um impacto significativo no âmbito global. Mas, por outro lado, esse crescimento também sinaliza a força do desenvolvimento de ecossistemas locais, em um país cujos últimos planos quinquenais apontam para o caminho da autossuficiência tecnológica.
Na corrida das patentes, analistas apontam para uma distinção importante: os EUA ainda mantêm uma vantagem em “patentes de alto impacto” e modelos de ponta. Muitas das patentes chinesas são focadas em aplicações práticas e melhorias incrementais. Esse fato reflete a estratégia do país de rápida implementação e comercialização de soluções, em contraste com o foco americano em pesquisa fundamental e arquiteturas de modelos inovadores.
> > > Você sabia que somadas, as comunidades de doutorado e pós-doutorado em IA da China já são duas vezes maiores do que toda a população de profissionais de inteligência artificial nos Estados Unidos?
Aqui um artigo bem completo e recente sobre a relação entre desenvolvimento tecnológico e geopolítica).
AI Plus: o top-down chinês e sua eficácia
Enquanto no Ocidente a inovação em IA é impulsionada pela iniciativa privada, na China, o Estado atua como o maestro de uma orquestra, coordenando cada passo e movimento. A abordagem é sempre centralizada, planejada e executada com uma visão de longo prazo. Já falamos disso aqui no Decode China em diversas edições (se quiser relembrar uma das passagens, veja essa aqui, sobre o sistema de metas da China, que define a forma como os prefeitos governam).
A estratégia chinesa fica clara em planos como o “Made in China 2025”, lançado em 2015, e os últimos planos quinquenais, que elevam IA a prioridade nacional.
O mais recente desdobramento da visão chinesa sobre IA é a iniciativa “AI Plus”, lançada em agosto de 2025. O objetivo revela a visão do papel da IA como um ecossistema e uma infraestrutura, com um plano para integrar a tecnologia em praticamente todos os setores da economia. O plano é estruturado em torno de seis áreas-chave que mostram a amplitude da ambição chinesa:
Ciência e Tecnologia: acelerar a descoberta científica e a inovação em P&D com o uso de IA
Desenvolvimento Industrial: integrar a IA em toda a cadeia produtiva, da agricultura à indústria, para criar novos modelos de negócio e aumentar a eficiência
Melhoria da Qualidade do Consumo: desenvolver novas aplicações de consumo, como dispositivos inteligentes e assistentes pessoais, para enriquecer a vida cotidiana
Qualidade de Vida: aplicar a IA em áreas como educação, saúde, cultura e esportes para melhorar os serviços públicos e o bem-estar da população
Governança: modernizar a administração pública com o uso de IA para otimizar serviços, melhorar a segurança e a gestão de emergências
Cooperação Global: promover um sistema aberto de cooperação em IA, participando ativamente da governança global da tecnologia
Os titãs da tecnologia e a nova onda de campeões de IA
Uma das características mais marcantes da economia chinesa é a convergência estratégica entre o Estado e o setor privado. O governo sinaliza prioridades nacionais— como na iniciativa “AI Plus”— e as grandes empresas de tecnologia se alinham a esses objetivos para garantir apoio e acesso ao mercado. Se você fosse CEO de uma grande empresa chinesa, seu sucesso dependeria de alinhar sua estratégia aos macro objetivos do país.
Nesse ecossistema, as gigantes da tecnologia, conhecidas como BATX (Baidu, Alibaba, Tencent e Xiaomi), desempenham um papel central. Embora o governo as tenham designado como líderes em áreas específicas para impulsionar o desenvolvimento nacional — Baidu em carros autônomos, Alibaba em cidades inteligentes e Tencent em saúde, existe uma competição acirrada nos setores estratégicos. Na saúde, por exemplo, a Tencent investiu na plataforma de telemedicina WeDoctor e desenvolveu o sistema de diagnóstico por imagem Tencent Miying, enquanto o Alibaba opera a AliHealth e seu modelo de IA “Doctor You”. Na educação, startups como Squirrel AI e Liulishuo lideram com tutoria adaptativa e ensino de idiomas, mas as gigantes também marcam presença com suas próprias divisões, como o Tencent Education e o Alibaba Cloud Education.
Também existe uma nova onda de campeões de IA surgindo, com estratégias inovadoras que desafiam o status quo. A DeepSeek, por exemplo, ganhou fama mundial em 2025 com seu modelo de IA de código aberto. Em dezembro de 2025, a startup lançou o DeepSeek V3.2, um modelo open-weight que, segundo a empresa, performa no mesmo nível dos modelos mais recentes da OpenAI e Google, superando-os em alguns benchmarks-chave de matemática. A abordagem open-source não apenas democratiza o acesso à tecnologia, mas também sinaliza uma mudança na filosofia de desenvolvimento de IA na China. O diferencial da DeepSeek está na eficiência: seus modelos usam menos recursos computacionais para treinar e custam menos para desenvolvedores executarem do que os modelos de laboratórios ocidentais.
Já a ByteDance, controladora do TikTok, aposta na IA para recomendação de conteúdo e está investindo pesado em IA generativa. Seu chatbot Doubao já conta com mais de 140 milhões de usuários mensais e a empresa está adotando uma estratégia ambiciosa de integração: em dezembro de 2025, lançou um agente de IA que pode ser integrado ao sistema operacional de smartphones, dando-lhe controle sobre qualquer aplicativo. Alguns exemplos do que o agente pode fazer: usar o app da Tesla para abrir o porta-malas usando comandos de voz, buscar os menores preços em diferentes plataformas de e-commerce e melhorar fotos com IA.
Essas empresas representam duas estratégias distintas no ecossistema de IA chinês: enquanto a DeepSeek compete na corrida de modelos cada vez mais capazes, a ByteDance foca em integrar suas ferramentas de IA no dia a dia das pessoas. Ambas abordagens refletem uma realidade comum: empresas chinesas focadas em difundir a IA através de sistemas industriais, infraestrutura urbana e serviços cotidianos para a população.
Futuro e desafios: a complexidade da governança (e da geopolítica)
Uma das diferenças mais fascinantes entre a China e o Ocidente reside na filosofia por trás do desenvolvimento da IA. Enquanto as grandes empresas de tecnologia ocidentais buscam criar modelos de IA universais, o chamado “one-to-all”, capazes de realizar uma vasta gama de tarefas com um único modelo, a China adota uma abordagem mais pragmática e especializada. Como vimos, a iniciativa “AI Plus” reflete essa visão: o foco não é criar uma única superinteligência universal, mas sim desenvolver IAs específicas e otimizadas para resolver problemas concretos.
Apesar dos avanços, a jornada da China não é livre de obstáculos, sendo o principal deles a “guerra dos chips”— disputa geopolítica onde Washington impõe restrições à exportação de semicondutores avançados desde 2018, intensificadas em 2022, limitando o acesso da China aos chips mais poderosos, como as GPUs da Nvidia, essenciais para o treinamento de grandes modelos de IA.
A resposta chinesa está em curso: um projeto estratégico em Shenzhen busca desenvolver máquinas de litografia de ultravioleta extremo (EUV), tecnologia-chave para a produção de chips de ponta. Este esforço envolve engenheiros recrutados de empresas ocidentais e é coordenado, em parte, pela Huawei. Um piloto do projeto foi completado em início de 2025 e já está operacional, com metas de produzir chips funcionais entre 2028 e 2030.
O projeto de Shenzhen mostra como a China está trabalhando seu plano de construir uma infraestrutura doméstica para alcançar autossuficiência em semicondutores.
Na esfera da governança, alguns movimentos demonstram um protagonismo na busca por uma liderança global. De forma concreta, a China esteve entre os primeiros países a criar regulações específicas para IA, a partir de 2022, em temas como conteúdos considerados nocivos, privacidade e segurança de dados. Ou seja, modelos como os desenvolvidos pela DeepSeek estão entre os mais regulados do mundo, segundo Joanna Bryson, cientista da computação e pesquisadora em ética de IA na Hertie School, em Berlim.
Seria a visão da população chinesa uma possível inspiração para o Brasil?
Voltando ao tema pelo qual começamos: o das narrativas. Em termos de soft power, pode até parecer que a China ainda não investiu na criação de um storytelling estruturado para divulgar como pretende ser percebida pelas outras nações em relação a IA. Sem dúvida, se e quando isso acontecer, o jogo vai ganhar novas dimensões.
Mas para a sua própria população, com sua propaganda interna, é sabido que desde muito tempo a China sabe construir narrativas. Isso não tem sido diferente com a IA.
Enquanto o Ocidente debate os riscos da IA com apreensão, a China abraça a tecnologia com entusiasmo notável. A China desponta como o país com a maior positividade: menor apreensão e maior empolgação, segundo a pesquisa IPSOS AI Monitor (2024).

Outros dados deste estudo mostram como chineses percebem que “produtos e serviços usando IA mudaram profundamente minha vida nos últimos 3-5 anos”. Enquanto 78% dos chineses concordam com essa afirmação, no Brasil esse índice é de 53% e nos EUA 37%. Isso mostra o papel que a tecnologia tem na vida cotidiana das pessoas na China.
Ainda segundo o estudo, 80% dos chineses estão entusiasmados com produtos e serviços que usam IA, comparado a 56% no Brasil, 40% no Canadá e 39% nos EUA. Os dados nos revelam como a China possui visões diferentes sobre o futuro, comparativamente a outros países, especialmente a “anglosfera”. Essa diferença não é sobre tecnologia; é sobre confiança social e narrativas sobre quem captura o valor do progresso.
No Ocidente, as pessoas temem que a IA beneficie apenas os ricos, deixando a classe trabalhadora para trás. Na China, há uma percepção de que o progresso é tangível e que o Estado pode frear excessos corporativos.
Os chineses vivem no dia a dia os trens de alta velocidade, o acesso instantâneo a serviços pelo celular, os pagamentos cashless, os carros inteligentes. A IA é a tecnologia nada abstrata que torna possível essa realidade visível.
O Brasil fica no meio do caminho: os dados refletem uma realidade onde há esperança de que a tecnologia possa trazer progresso, mas também preocupações legítimas sobre quem se beneficiará. Talvez seja propício abrirmos nossos olhos para o caminho chinês, como propõe Ronaldo Lemos:
“As IAs americanas são modelos de grande ‘sabedoria’, mas ainda divorciadas da realidade prática. As chinesas pensam a sabedoria como algo instrumental, para resolver problemas que existem aqui e agora.”





