Taiwan: o tempo paciente de uma ilha moderna
[como uma ilha marcada por ocupações e espiritualidade se transformou em uma potência global no universo dos chips]
Com uma viagem de trabalho planejada para Tóquio, olhamos para o mapa e começamos a pensar: como aproveitar os três rápidos dias de “miniférias” para explorar algum lugar na Ásia? Teríamos a chance de nos encontrar pessoalmente (afinal moramos em lados opostos do mundo - Carla em São Paulo e Patricia em Xangai). Contra todas as vozes que diziam “conheça outras cidades no Japão”, nossa vontade mais forte era visitar Taiwan. E assim foi.
Taiwan tinha uma aura de mistério. Sabíamos que o idioma era o mandarim (alvo de nossos estudos), mas e a cultura? E o desenvolvimento? E a comida?
PS: já adiantamos que não vamos entrar em questões geopolíticas envolvendo China, EUA e Taiwan (mas sugerimos a pesquisa!)
Vamos contar coisas que aprendemos e vivenciamos nessa terra tão comentada quanto desconhecida.
Vale dizer que não havia um dia em que não falávamos sobre o quão pouco se aprende sobre a história da Ásia nas escolas do Brasil.
Origem indígena e uma história complexa de ocupações
Desde que os primeiros navegadores portugueses exclamaram “Ilha Formosa” ao avistarem a bela ilha em 1542, seus habitantes viveram sob diferentes domínios, o que torna a trama de Taiwan profundamente complexa.
A ilha foi ocupada pelos holandeses, espanhóis, pelas forças han-chinesas lideradas por Koxinga (Zheng Chenggong) durante o período Ming, pela dinastia manchu Qing (China), pelos japoneses e, após 1945, passou à administração do governo nacionalista chinês, refugiado em Taiwan ao fim da guerra civil chinesa.
A “japonização”de Taiwan
Taiwan foi modernizada e profundamente marcada pelas políticas econômicas e pela cultura nipônica. Em 1895, depois da guerra entre a China e o Japão, a corte da dinastia Qing assinou o tratado de Shimonoseki e cedeu Taiwan ao Japão, que passou a ser uma colônia japonesa.
Os 50 anos da história de Taiwan sob o domínio japonês desenharam uma sociedade interessante em sua complexidade.
Mais do que apenas uma ocupação político-econômica, o Japão viu em Taiwan a oportunidade de desenvolver uma “colônia modelo”. Portanto, o projeto envolveu também um projeto de assimilação da cultura japonesa. Os primeiros anos foram de resistência e luta, que representaram uma década de tentativas fracassadas (de um povo que lutava literalmente com facas e enxadas contra um exército armado).
Primeira fase: resistência
Nesse período, o Japão foi impondo contenções ao desenvolvimento de qualquer cultura que não fosse a nipônica. Encontros organizados e jornais taiwaneses, por exemplo, foram proibidos, assim como realizar rituais ligados à antiga dominância Han (grupo étnico oriundo da China). No lugar de escolas confucionistas, entrou a força da educação japonesa, que ensinava também a lealdade total ao Imperador do Japão, assim como a ética japonesa.
Segunda fase: assimilação cultural
Assim que a resistência foi controlada, o Japão passou para a fase de assimilação cultural e linguística. Templos xintoístas foram construídos por toda a ilha. Religiões locais (Taoísmo, Budismo e práticas espirituais indígenas) foram suprimidas. A ideia de que era mais “civilizado” ter um nome japonês ou vestir-se como os japoneses passou a ser disseminada. Junto com a educação, essa foi a forma encontrada pelo Japão para dominar a sua narrativa na então “colônia-modelo”. Isso durou até 1930.
Terceira fase: imposição pelo controle
As autoridades coloniais implementaram políticas para apagar a identidade chinesa e impor a identidade nacional japonesa. Era proibido ter nomes que não fossem japoneses e também falar chinês ou outros dialetos locais em público. A exposição da cultura chinesa em publicações era censurada. O objetivo: transformar Taiwan em uma extensão do império japonês.
Ironicamente, muitos dos avanços que fizeram com que Taiwan se desenvolvesse vieram desse período. Enquanto reprimia as expressões culturais chinesas e taiwanesas, modernizava a ilha, construindo ferrovias, escolas, sistemas de saúde e indústrias.

O legado colonial foi ambíguo: lançou as bases da modernização, mas o fez por meio da assimilação forçada e da perda cultural.
Quando o Japão se rendeu em 1945, ao final da Segunda Guerra Mundial, Taiwan era uma sociedade moderna, mas culturalmente fraturada. Muitas pessoas falavam melhor o japonês do que o chinês e carregavam sentimentos ambíguos em relação aos dois países — uma herança que ainda hoje atravessa a identidade taiwanesa.
Como a paciência virou poder tecnológico
Nos anos 1990, as autoridades locais de Taiwan lançaram a política “no haste, be patient”. Uma tradução aproximada dessa ideia seria: “sem pressa, com paciência”. Num momento em que o capital taiwanês ameaçava migrar em massa para o continente, o objetivo era conter esse movimento e criar um sistema de controle sobre investimentos e tecnologias estratégicas. O que parecia, na época, uma escolha excessivamente cautelosa, acabou se mostrando visionária.
Trinta anos depois, o mesmo raciocínio - de não se apressar e não depender demais de qualquer outra região - reaparece no campo tecnológico e geopolítico.
A ilha de Taiwan foi muito atenta aos efeitos positivos gerados por essa política e adotou essa prática para sustentar sua autonomia em relação aos demais países, baseada em uma interdependência cuidadosamente calibrada.
Taiwan se transformou na powerhouse mundial dos chips, produzindo quase toda a base tecnológica que move a inteligência artificial - de smartphones a satélites. A TSMC, gigante fundada em 1987, virou o coração desse sistema. Produz chips para praticamente todas as grandes empresas de tecnologia do mundo (Apple, Nvidia, AMD, entre outras). Concentra cerca de 92 % da produção mundial de chips de processamento avançado, que alimentam a IA e a computação de ponta.
Exporta para todos os lugares do mundo (inclusive para a China continental), mas preserva dentro de casa o conhecimento e a capacidade produtiva crítica. Esse equilíbrio faz de Taiwan uma região indispensável no tabuleiro global da tecnologia. Um pequeno território adquiriu uma força desproporcional ao seu tamanho — ou melhor, um escudo, como chamam os analistas. Taiwan possui um silicon shield, o “escudo de silício”, que protege a ilha não pela força militar, mas pela centralidade econômica que ela conquistou pacientemente.
O documentário A Chip Odyssey, dirigido por Hsiao Chu-chen (2025), conta essa trajetória com uma lente humana: as histórias das pessoas por trás ascensão de Taiwan como essa potência global dos semicondutores.
Trailer do filme "A Chip Odyssey", lançado em junho de 2025
CULTURAL CHECKBOX
Se quisermos ler essa história por um viés mais cultural, o “no haste” expressa uma ética profundamente confuciana: agir com medida, não pela inércia, mas pela consciência do tempo certo das coisas.
Ao mesmo tempo, há também uma influência taoista, na ideia de wú wéi (无为)(agir sem forçar, agir em harmonia com o fluxo natural das coisas), que ainda orienta o jeito taiwanês de pensar política, inovação e diplomacia - uma estratégia que aposta mais na resiliência paciente do que na velocidade.
Brazil-Taiwan: uma história de 70 anos
A imigração de taiwaneses para o Brasil começou nos anos 1960, quando famílias agricultoras, sobretudo de Kaohsiung, buscaram novas terras para um novo começo.
O primeiro grupo organizado desembarcou em 1963: seis famílias cristãs que compraram uma fazenda perto de São Paulo e começaram o cultivo de cogumelos, que com o tempo invadiu os restaurantes de São Paulo e do Brasil.
A estimativa é de que hoje vivam no país cerca de 70 mil pessoas de origem taiwanesa, concentradas em São Paulo, Rio Grande do Sul, Paraná e Rio de Janeiro.
Curiosidades:
// em São Paulo, cerca de 70% da comunidade “chinesa” tem raízes em Taiwan
// 85% dos cogumelos consumidos aqui são produzidos por descendentes de taiwaneses
Relação político-diplomática Brasil e Taiwan
No Brasil, quando conhecemos alguém que fale “chinês”, existe uma grande chance de estarmos falando de alguém de origem taiwanesa. Aqui, a distinção entre Taiwan e China continental nem sempre é clara ou feita de forma consistente. O governo brasileiro, como muitos outros países, não reconhece oficialmente Taiwan como um Estado soberano independente, tratando-o como uma província da China.
A bela cidade de Taipei
Um pouco sobre nossa viagem. Foram três dias caminhando por Taipei sob o calor úmido de setembro (35 °C). O som das ruas era o chinês… nas vozes, nos letreiros, nas músicas que vinham das lojas. Praticamos nossos conhecimentos da língua enquanto fazíamos uma reflexologia por 500 dinheiros locais (R$ 87,00).
Taipei é uma cidade grande com características de modernidade, mas com charme de quem tem uma história própria para contar.
Andamos por metrôs limpos e organizados, passamos por parques que contornam rios, vimos pessoas correndo, crianças aprendendo a andar de bicicleta. Admiramos o verde exuberante da cidade (que de certa forma, nos lembrou de outros países tropicais do sudeste asiático, assim como do Rio de Janeiro).
Nos surpreendemos com os templos tão integrados ao dia a dia das ruas, sem qualquer grande cerimônia. Vimos e entramos em muitos deles. O que mais nos surpreendeu foi o FaChuKung, de cinco andares, três deles dedicados, cada um, a uma filosofia ou religião diferente: o confucionismo, o taoísmo e o budismo. Um lembrete de como o pensamento taiwanês integra o diverso em vez de separar.




Conhecemos o Taipei Xia Hai City God Temple, o templo Xingtian e o templo de Longshan, onde fomos presenteadas com uma cerimônia matinal, logo antes da nossa partida.
Comemos no restaurante que tornou o xiao long bao famoso em outras terras, o Din Tai Fung.
Conhecemos o Dadaocheng Visitor Center, no distrito de Datong, um dos mais charmosos da cidade.
Nos perdemos entre uma ruazinha e outra, casa de chás, de bubble tea, lojinhas e livrarias. Letreiros (alguns bem antigos) por toda parte. Predinhos baixos, tradicionais, com boutiques modernas no andar de baixo.






E quando chega a noite, vem com ela o vapor das bancas de comida de rua e sua diversidade de iguarias. A noite, saindo das ruelas escuras, caímos na modernidade que toma forma em avenidas iluminadas.
Na memória, levamos os cheiros do incenso, os temperos, as cores dos jardins, a temperatura do chá. Carregamos conosco o barulho dos “jiaobei” 筊杯 jogados nos chãos dos templos e o sorriso de quem ficou feliz por ter conseguido ter uma pequena conversa (em chinês) com uma pessoa local.
E de termos aprendido que o nome da senhora simpática era “meihua de Mei” (梅花), que quer dizer “Mei, de flor da ameixeira”.
CURIOSIDADE CULTURAL
Muito antes de ser “descoberta” pelos europeus, Taiwan era uma terra de povos indígenas austronésios — grandes navegadores, ligados ao mar e à vida comunitária. Eles são parentes linguísticos e culturais dos povos do Pacífico e do Sudeste Asiático (Filipinas, Indonésia, Malásia, até Madagascar e Havaí). Hoje, o governo local de Taiwan reconhece oficialmente 16 grupos indígenas, entre eles Amis, Atayal, Paiwan, Rukai, Bunun, Puyuma, Tsou e Tao (Yami). Atualmente, os povos indígenas representam menos de 3% da população de cerca de 23 milhões de pessoas, mas originalmente havia muitas pequenas comunidades com identidades próprias, espalhadas por toda a ilha.












