Em 2024, uma das autoras desta newsletter entrou, quase por acaso, em uma loja de esquina chamativa, enquanto caminhava pela Nanjing Road, em Shanghai. Não sabia que estava prestes a viver uma experiência que mudaria para sempre seu olhar sobre o varejo físico.
“Eu não conseguia sair, subia e descia os andares, voltava ao começo, tirava fotos, fazia vídeos, olhava as mercadorias em loop. Estava fascinada porque nunca tinha visto nada parecido. A loja em questão viria a ser famosa, um ano depois, com a trend Labubu. Era a Pop Mart.”
Se você ainda não esteve na China, prepare-se para se surpreender. Em cidades do chamado “tier 1”, espere encontrar lojas de visual impactante, repletas de telas de altíssima definição, arquitetura envolvente, experiências imersivas, branding sofisticado e, principalmente, uma fluidez entre o mundo físico e o digital que redefine o que entendemos por “fazer compras”. Algumas dessas lojas são globais. Outras, como a própria Pop Mart, nasceram no território chinês e estão em plena expansão internacional, conquistando consumidores locais e estrangeiros, com estratégias precisas, branding autoral e uma sensibilidade estética profundamente conectada ao imaginário jovem.
Mas, mais do que beleza ou espetáculo, o que essas lojas oferecem é uma nova lógica de operação: uma transformação estrutural do ponto de venda em ponto de dados. Uma fusão onde cada interação vira insumo para decisões em tempo real. Isso muda tudo.




A combinação perfeita: crescimento econômico, digitalização massiva e uma nova geração consumidora
Para entender a revolução do varejo físico na China, é preciso voltar algumas casas no tabuleiro. O que está acontecendo por lá não é apenas resultado de boas ideias de negócio ou marketing, mas de uma convergência rara entre prosperidade econômica, ambição tecnológica e transformação cultural.
A classe média chinesa cresceu 47,8 pontos percentuais em apenas dezoito anos. Em 2000, representava apenas 3,1% da população (cerca de 39 milhões de pessoas). Em 2018, passou a representar mais de 50% — o que significa 707 milhões de chinesas e chineses com maior poder de compra. Um salto impressionante, se compararmos com o Brasil, que tem hoje 203 milhões de habitantes.
Junto com o avanço econômico, veio também o crescimento acelerado da renda nacional bruta per capita, que saltou de US$ 950 para US$ 13.660 no mesmo período.
Ao mesmo tempo, a geração Z chinesa (nascida entre 1995 e 2009) passou a ocupar um espaço central. Representando 19% da população, trata-se da geração mais afluente da história do país. E, mais do que isso, é uma geração que já nasceu conectada à lógica dos superapps chineses, que misturam pagamentos, redes sociais, entretenimento e consumo em um só ambiente.
Não por acaso, o governo chinês colocou a digitalização no centro da estratégia nacional a partir do 12º Plano Quinquenal (2011–2015). A sincronia entre explosão da classe média e investimento massivo em infraestrutura tecnológica criou uma combinação perfeita. O que viria depois não era apenas um upgrade do varejo, mas uma reinvenção radical da ideia de loja.
A loja como experiência fluida: quando o físico e o digital se fundem
Curiosamente, uma das representações mais visíveis da modernidade radical do varejo chinês está… em um supermercado. Sim, um supermercado. A rede Hema Fresh (ou Freshippo, fora da China), do Alibaba, mostra que a promessa do varejo phygital já é realidade — e se apresenta menos como um show de inovação e mais como um sistema invisível de eficiência integrada.
Trata-se de uma loja onde o físico e o digital não são camadas separadas, mas elementos fundidos de uma mesma experiência. A jornada é toda construída com base em dados, IA e automação — e ainda assim, acontece de forma natural para quem consome.
Agora imagine:
Você entra na loja e precisa abrir o app da Hema Fresh. Sem ele, não é possível comprar nada
Ao escanear o QR code de um produto, você acessa reviews, receitas, informações de origem e sugestões personalizadas
Quer frutos do mar? Escolhe uma lagosta viva em um dos aquários. Se quiser levar para casa, pede para cortarem e limparem. Se quiser comer, pede para cozinharem na hora
Enquanto come ali mesmo, você continua comprando via app, navegando no cardápio digital de produtos
Sacolas com os itens circulam em trilhos suspensos no teto da loja e chegam até sua mesa
O pagamento? 100% digital. Muitas vezes, não há caixas, nem filas, apenas o app. Outras vezes, são usados os postos de autoatendimento, com reconhecimento facial
E se preferir não carregar nada, você agenda a entrega em casa e suas compras chegam em até 30 minutos, no raio de 3km
Fomos procurar imagens impactantes do Hema para ilustrar toda essa experiência. Não encontramos. Talvez seja esse justamente o ponto: essa tecnologia não impressiona pelo visual. Ela é silenciosa, mas profunda. Uma infraestrutura invisível, inteligente, operando em segundo plano e moldando toda a lógica do consumo.
Esse modelo de operação exige robustez tecnológica e investimento contínuo. O Alibaba já destinou mais de US$ 20 bilhões à estratégia de “new retail”. A Hema conta hoje com 430 lojas, sendo cerca de 280 altamente tecnológicas e atingiu seu primeiro lucro operacional em 2024.
O combustível por trás de tudo: dados, muitos dados
Com 1,4 bilhão de pessoas integradas por uma mesma arquitetura digital — que envolve apps de pagamento, redes sociais, plataformas de delivery e ambientes de consumo —, a China opera hoje uma das maiores e mais completas infraestruturas de dados de comportamento do mundo. No coração desse sistema está o Alibaba, que atende mais de 1 bilhão de consumidores.
O que isso significa? Significa que cada interação — um clique, uma caminhada no shopping, uma reação em live, uma visita a uma loja de conveniência — vira dado. E esse dado alimenta algoritmos de machine learning treinados para antecipar padrões, prever preferências, ajustar ofertas em tempo real.
Trata-se de um ciclo virtuoso: quanto mais gente usando, mais dados disponíveis; quanto mais dados, mais eficiente a IA; quanto mais eficiente a IA, melhor a experiência; quanto melhor a experiência, mais gente usando.
Se no Ocidente a inteligência artificial ainda é tema de discussão ética e testes-piloto, na China ela já virou infraestrutura operacional.
E isso não acontece por acaso. Há três pilares que sustentam essa liderança:
INFRAESTRUTURA COORDENADA “DE CIMA PARA BAIXO”
O governo chinês destinou US$ 56 bilhões só para 2025, dentro de um plano estratégico de IA em escala nacional. Não é uma corrida entre empresas, é uma política de Estado.CONFIANÇA NA TECNOLOGIA
Segundo a Bain & Company (2024), consumidoras e consumidores chineses confiam 45% mais na IA do que americanos e 40% mais do que europeus.VELOCIDADE DE IMPLEMENTAÇÃO COMO CULTURA ORGANIZACIONAL
O assistente virtual Wenwen, do Alibaba, saiu do beta e foi implementado em larga escala durante o Singles Day de 2023. O que no Ocidente levaria anos, por lá acontece em semanas.
Quando a loja te conhece melhor do que você: hiperpersonalização preditiva
Na China, a personalização deixou de ser uma “experiência premium” e passou a ser o ponto de partida de qualquer jornada de consumo. Não se trata apenas de recomendar produtos com base no histórico de compras. Trata-se de antecipar desejos, antes mesmo que eles se tornem conscientes.
Lojas físicas começaram a entender que só tinham a ganhar se integrarem o digital em suas experiências de compra. Foi assim que o live commerce passou a integrar suas estratégias de marketing. É comum você entrar em uma loja da China e ver vendedores e vendedoras gravando vídeos para plataformas digitais como o Douyin (o Tiktok chinês). Mas o live commerce ainda vai merecer uma edição inteirinha dedicada a essa assunto, aqui no Decode China.
Já o Alibaba opera seu modelo de linguagem proprietário, o Tongyi Qianwen, que processa dados comportamentais de mais de 1 bilhão de clientes para personalizar ofertas em tempo real. Não importa apenas o que você comprou, mas também quando, como e em que contexto.
E a personalização nas lojas ainda vai bem além:
Outdoors e displays se adaptam em tempo real ao perfil de quem se aproxima
Preços são ajustados dinamicamente com base em tráfego, perfil e inventário
Tecnologia de análise emocional mede surpresa, interesse e engajamento facial
(só pra encantar os olhos, imagens de lojas em Shanghai, destinos de muitas flagships de marcas globais. Nessa ordem: Gentle Monster, Anta Sports, Pop Mart, Li Ning, Shui On - food market, Gucci flagship e Supreme flagship)
A eficiência operacional por trás de tudo
Tudo isso só funciona porque a retaguarda logística foi também radicalmente transformada. A cadeia está integrada com a logística, com previsões de demanda em tempo real (com dados, dados e mais dados).
A rede Cainiao, braço logístico do Alibaba, opera com uma lógica de IA preditiva que antecipa picos de demanda antes que eles aconteçam. Em festivais de compra como o Singles Day (o evento de comércio mais importante da China), isso significa mais eficiência, diminuição de custos com estocagem e transporte de itens desnecessários, entregas no prazo e clientes chineses satisfeitos.
Assim como muitas outras coisas na China, é a visão do ecossistema, pensando em todas as pontas, que garante uma jornada fluida.
Por isso o que acontece no varejo da China é difícil de reproduzir. O que aparece na loja, na ponta, começou muito antes.
O comércio preditivo e a arquitetura da vigilância
Aqui entra o ponto sensível. A mesma arquitetura que permite personalização extrema é também a base de um sistema de rastreamento comportamental sofisticado.
No caso da Tencent, outra gigante do comércio, a integração entre WeChat, pagamentos, comportamento social e compras cria perfis de consumidor de uma profundidade sem precedentes.
São mais de 176 milhões de câmeras CCTV em operação na China — com crescimento de 12% ao ano — e mais de 900 patentes de reconhecimento facial registradas, número 10x maior que nos Estados Unidos.
O que se forma, na prática, é um ecossistema onde cada gesto ou atividade é interpretado como dado. A loja vira uma espécie de sistema sensorial urbano.
Entenda os pontos de coleta de dados da Tencent:
Comunicação Social:
Mensagens privadas e em grupo
Momentos (posts sociais)
Status e localização
Comportamento de Pagamento:
Transações online e offline
Histórico de compras detalhado
Padrões de gastos por categoria
Mini Programas (os apps dentro do super app):
Comportamento de navegação
Tempo gasto em cada app
Preferências de produtos/serviços
Dados Contextuais:
Localização em tempo real
Rede social e conexões
Horários de atividade
E o Brasil com tudo isso?
A chegada ao Brasil da Mixue, maior rede de lojas do mundo (mais de 46 mil unidades), marca um momento simbólico: o modelo chinês está cruzando fronteiras.
Fundada em Zhengzhou, uma cidade de “tier 2”, a Mixue representa o poder de escalar experiências em cidades menores antes de se lançar ao mundo. O investimento de R$ 3,2 bilhões no Brasil é a primeira aposta latino-americana da marca.
Isso sinaliza que o Brasil está na mira como laboratório de expansão para modelos phygitais já testados na China. Outras marcas chinesas estão observando o movimento e muitas se preparam para desembarcar no Brasil.
Para varejistas brasileiros, não será fácil replicar elementos dessa lógica, pois os desafios, como vimos, começam muito antes de pensar na experiência da loja.
Brasil possui uma densidade populacional menor = menos dados = menos previsibilidade
Cultura de coleta de dados incomparável à chinesa = personalização não chega no mesmo nível
Fragmentação tecnológica = dificuldade de integração entre canais
Redefinindo o que significa “fazer compras”
Podemos concluir que a China não copiou o omnichannel ocidental. Ela criou algo novo. Enquanto por aqui conectamos canais, lá os canais foram fundidos em uma experiência indivisível, onde físico e digital se complementam de forma tão fluida que nem percebemos onde um começa e o outro termina. O que está em jogo não é só uma inovação tecnológica, mas sim uma nova mentalidade de varejo, uma espécie de orquestração muito bem feita entre dados, tempo, desejo e experiência.
Duas perguntas que ficam: estamos prontas e prontos para essa onda? Será que estas empresas chinesas vão estudar devidamente o comportamento de brasileiros e brasileiras para conseguir nos encantar?
Deixamos aqui nosso 拜拜 (bai bai) com uma curiosidade cultural: os caracteres que representam o "bye bye” ocidental podem ter o mesmo som, mas têm um significado mais profundo, a partir do seu ideograma. Querem dizer "prestar respeitos curvando-se com as mãos na frente do peito segurando bastões de incenso, ou com as palmas das mãos unidas".
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